True Detective talvez seja uma das melhores séries de investigação da HBO, pois ela é ritualística, intercalando linhas temporais que exploram as transformações de seus personagens ao longo de 17 anos. Mas, curiosamente o centro da narrativa não está apenas na busca por um assassino, mas no embate filosófico e psicológico entre os detetives Rust Cohle (McConaughey) e Martin Hart (Harrelson). Enquanto Hart personifica o arquétipo do homem comum preso a contradições morais, Rust emerge como uma figura complexa, marcada por uma visão de mundo profundamente cética e niilista. Decidi nessa Review organizar todos os meus pensamentos em tópicos sobre essa temporada, porque ela foi realmente uma das melhores experiências televisivas que já tive.
O Homem que Observa o Abismo: Rust Cohle é um personagem assombrado por sua própria existência. Ex-policial infiltrado no narcotráfico e sobrevivente de um trauma familiar devastador, ele se tornou um detetive obsessivo e um filósofo existencialista, cuja visão de mundo rejeita ilusões sociais e abraça a ideia de que a consciência humana é um "trágico erro da evolução". Sua postura introspectiva e discursos carregados de pessimismo fazem dele um protagonista magnético, desafiador e, paradoxalmente, profundamente humano. A relação de Rust com o tempo é um dos aspectos mais intrigantes da temporada. Ele acredita que a vida é um ciclo eterno de repetição, um "círculo achatado" onde tudo se repete infinitamente. Essa perspectiva se reflete tanto na estrutura narrativa da série quanto na forma como sua própria obsessão com o caso o consome. Seu caderno de anotações, sua capacidade analítica e sua dedicação inabalável à verdade contrastam com sua decadência física e emocional ao longo dos anos.
Niilismo: O contraponto a Rust é Marty Hart, um policial que se considera um homem de família e defensor da ordem, mas cuja hipocrisia é exposta ao longo da série. Enquanto Rust vê a sociedade como uma construção falsa e corrompida, Marty busca se agarrar a seus valores tradicionais, mesmo quando não consegue segui-los. O embate entre os dois não se restringe ao método de investigação, mas se estende a suas concepções de vida, moralidade e redenção. Entretanto, True Detective não se contenta em apenas explorar a miséria existencial de Rust. À medida que a investigação se aproxima de seu desfecho, vemos uma sutil transformação em sua percepção. "A consciência humana foi um passo em falso trágico na evolução humana" isso é Rust basicamente afirmando que ele acha que a autoconsciência é uma programação falha e francamente deplorável dentro da humanidade. Rust Cohle, no começo da série, é sem dúvida um niilista acreditando que a vida é inútil e que não há certo e errado, objetivo ou verdadeiro senso de moralidade pelo qual possamos viver. Como você sabe, a filha de Rust morre muito antes do começo da primeira temporada de True Detectives, normalmente a cinematografia tende a representar as crianças como figuras de pureza refletidas dentro de nós, nossa humanidade e como protegê-las representa proteger nosso futuro e nossa inocência. Quando a filha de Rust morre, isso pode ser visto como a morte de sua inocência e da moralidade na vida que ele tenta aderir nos capítulos de 1995 e 2002. Isso é ainda mais evidente quando você percebe que é bem provável que a morte de sua filha tenha dado a Rust muitas de suas crenças atuais na série, ou seja, o ser que representa a humanidade e o que deu propósito a Rust na morte da vida o fez se aventurar em suas crenças niilistas, pois isso o representa tendo um propósito perdido na vida, levando-o à depressão. Por isso seu monólogo final, ele menciona que, apesar de toda a escuridão, há mais luz do que sombra no universo. Essa pequena fagulha de esperança, mesmo que mínima, sugere que sua jornada foi mais do que um ciclo de desespero — foi uma luta contra a própria escuridão, tanto externa quanto interna.
O Labirinto e Carcosa: A sequência final, onde Rust e Marty entram no esconderijo do assassino Errol Childress, é uma representação de um labirinto mítico. O local, apelidado de Carcosa, remete ao livro O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, uma influência literária da série. Carcosa simboliza um reino de loucura e perdição, um espaço onde o tempo não segue uma linearidade convencional e onde aqueles que entram correm o risco de nunca mais sair os mesmos. O labirinto também representa a jornada interna de Rust e Marty. Não é apenas uma caverna literal, mas um reflexo do inferno psicológico pelo qual ambos passaram ao longo dos anos de investigação. Errol, com seu comportamento grotesco e dialeto distorcido, é o Minotauro desse labirinto — a personificação final do mal que eles enfrentam.
O Ciclo do Tempo e o Espaço Interestelar: Durante a perseguição a Errol, Rust entra em uma grande câmara dentro de Carcosa, onde tem uma visão de um vórtice negro no céu, semelhante a uma galáxia espiral. Esse momento pode ser interpretado de várias formas:
1. Realidade distorcida pelo trauma; Rust já demonstrava tendências alucinatórias devido a seu passado de abuso de drogas e seu estado psicológico instável. O vórtice pode ser apenas uma manifestação de sua mente perturbada.
2. A simbologia do tempo circular; A teoria do “círculo achatado” que Rust defende ao longo da série sugere que o tempo não é linear, mas sim uma repetição infinita. O vórtice pode representar esse conceito, reforçando a ideia de que os eventos se repetem e de que o destino de Rust sempre foi encontrar esse lugar.
3. O abismo cósmico; O visual do vórtice evoca imagens de um buraco negro, algo vasto e incompreensível. Isso ressoa com o tom filosófico da série, onde o verdadeiro terror não é apenas o mal humano, mas a insignificância do ser humano diante do universo.
A Morte e a Ressurreição de Rust Cohle: Após ser esfaqueado por Errol, Rust tem uma experiência de quase-morte onde sente a presença de sua filha falecida. O homem que passou toda a série rejeitando sentimentalismos e acreditando no vazio do universo experimenta, pela primeira vez, algo transcendental. Esse momento simboliza uma morte metafórica de sua antiga identidade e um renascimento: ele sai do hospital mais sereno, menos consumido por sua visão niilista. Agora finalmente Rust encontra um sentido no sofrimento, algo que antes ele negava veementemente. Seu monólogo final sobre a luz vencendo a escuridão, como já dito anteriormente, indica que, mesmo que ele ainda veja o mundo como um lugar brutal, há espaço para algo além do puro pessimismo, encapsulando o diálogo final entre Rust e Marty através da transformação do protagonista. Quando Marty menciona que parece haver mais escuridão do que luz no céu, Rust responde que ele vê o contrário, a luz tem sido a força predominante desde o início. Esse embate entre luz e escuridão remete à luta contra o mal, não apenas no sentido físico da investigação, mas também na batalha interna de Rust contra seu próprio desespero existencial. Se no começo da série ele enxergava a vida como um ciclo inescapável de sofrimento, agora ele vislumbra a possibilidade de algo além.
Conclusão de Rust: Pessoalmente, há demônios suficientes dentro de Rust para fazer alguns espectadores acreditarem durante os episódios anteriores que ele poderia ser o Rei Amarelo. Rust foi ao canto mais escuro e a escuridão permaneceu nele. Então, quando Childress marca sua fortaleza decadente como Carcosa, Rust vê isso como um precursor do negócio real. Todos os corpos mumificados decorados com chifres e a voz estrondosa de Childress não são horríveis o suficiente para Rust compreender Carcosa. Há Carcosa em todos nós e é o inferno escuro do qual somos capazes que nos assusta. Para a maioria de nós, as paredes de tijolos da fortaleza podem definir os limites malignos de Carcosa, mas para Rust, elas são apenas o começo. Então, sua mente cria para ele a verdadeira porta para Carcosa. Com isso, Rust fica aterrorizado pela quantidade de escuridão ao seu redor e como é fácil para ele testemunhá-la sem se encolher (ao contrário de Marty). Ele não teve uma vida fácil. Ele vê a morte e está pronto para abraçá-la. Ele sente calor e absolvição. Ele vê sua filha e seu pai. Ele queria deixar ir por um longo tempo e talvez ele sentisse que seu trabalho aqui estava feito, já que Childress seria levado à justiça muito em breve. A alucinação era uma maneira de nos dizer que sua mente estava acolhendo a morte.
No final das contas, quando Rust estava prestes a se aproximar de sua própria morte, o amor que sentia por sua filha e o amor que ela tinha por ele voltaram para ele. Isso o lembrou de sua humanidade. Os momentos em sua vida que fizeram valer a pena viver. Rust queria acolher a morte, porque isso acabaria com o que ele percebia ser uma vida sem sentido. Mas naquele momento, ele encontrou sentido. Ele queria abraçar a morte, porque isso significava que ele poderia abraçar essa humanidade e novamente que ele havia perdido quando seu filho morreu.
Isso foi lindo até, pois mostrou o quão profundamente podemos nos conectar com as coisas, e como podemos encontrar significado e propósito nas coisas, seja nos nossos amigos e/ou entes queridos. Acho que isso fala muito sobre o quão trágico Rust é como personagem e, por isso, acho que ele é um dos meus protagonistas favoritos dentro da televisão. Você pensa em todos aqueles momentos em episódios passados, e percebe o quão brutalmente ferido ele estava. Que ele perdeu todo o significado de estar vivo, e é muito triste. E então esse final foi uma catarse extrema, mostrando que há vontade da Humanidade de sobreviver e superar os obstáculos independente da tragédia sofrida.
Certamente uma das melhores temporadas na história da televisão.